quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Desafio diplomático | # 3

Memória apagada, história mal contada

Nosso fio condutor é Ivanilda, que durante 31 anos procurou nos arquivos sinais do seu marido desaparecido político. Suas idas e vindas se trançam com as ações de militantes e parentes das vitimas da ditadura e da violência policial dos dias de hoje que vão desvelando outros fios pelas ruas e cemitérios clandestinos do Rio. Eles pertencem ao Grupo Tortura Nunca Mais /RJ e interagem entre a lembrança traumática e o esquecimento no trabalho de trazer à tona a memória de fatos recentes, revelando a seletividade da história oficial e de construir uma memória política. Pensam no passado para que possam libertar o futuro dos fantasmas que ainda nos perseguem no presente.

Esta é a sinopse do filme "Memória para uso diário". Um premiado documentário lançado em 2007, com 94 minutos de duração, dirigido, escrito e produzido por Beth Formaggini. E ele é o eixo do Desafio diplomático desta semana. Assista ao trailer.



A estrutura narrativa em forma de mosaico [do filme], embora a princípio um pouco confusa, possibilita a cobertura de aspectos diversos do tema – como a importância e abrangência da atuação do grupo Tortura Nunca Mais (que co-patrocina a produção), as consequências psicológicas para os torturados, a questão da memória pessoal e sentimental, as estratégias do aparato militar para sonegar informações (e a leniência dos governos civis para aprovar leis que as liberem), a formação dos torturadores no Brasil e na Escola das Américas (EUA), e a persistência da tortura e das execuções sumárias nos dias atuais, resultando numa abordagem densa e multifacetada do tema, que utiliza com inventividade depoimentos, reportagens televisivas, material gráfico e de arquivo. (Maurício Caleiro, Overblog) grifo nosso


Reconstituindo a memória...
Em 1964, foi dado um golpe de Estado no Brasil, liderado e executado pelas forças militares. Afastado o então Presidente da República João Goulart e assumindo o Generall Castelo Branco, instaurou-se no país um regime totalitário que perduraria até o ano de 1985. Regime este caracterizado por censura e repressão por parte do governo e de insatisfação, oposição e luta por uma parte da sociedade brasileira, especialmente pelos impetuosos e organizados militantes comunistas.


Atos inconstitucionais outorgados pelo governo do Regime suprimiam a expressão popular, criminalizando determinadas manifestações e obrigando algumas pessoas que não se contentavam com tais regras a viverem na clandestinidade; cidadãs/ãos foram viver no exílio. Houve desaparecimentos, torturas e mortes.


Por alto, 'todo mundo' sabe esta história. Mas aí é que está o maior problema: por alto. Por que "por alto"?


Contextualizando...
Para nós, estudantes, profissionais e interessados em Arquivologia e Ciência da Informação, a relevância da informação registrada é imensurável, tanto quanto objeto direto de nossos trabalhos e estudos quanto pelo papel que ocupa na construção e manutenção da memória, papel este que lhe é inerente, seja esta memória coletiva ou individual. Esta relevância é agregada de valor pela informação não-registrada, aquela que cada um de nós guarda e transmite, dia a dia, construindo aquilo que chamamos de história oral.


O desmantelamento da memória individual e coletiva, registrada e não-registrada, é o que podemos constatar em "Memória para uso diário": documentos total ou parcialmente destruídos pelo Regime; publicações jornalísticas e Estatais com informações modificadas em relação aos fatos, o que pôde ser constado pela contradição entre o que está registrado e o que relatam parentes de vítimas e pessoas que viveram aquelas experiências; ações deliberadas de fazer com que as pessoas que foram presas e/ou torturadas se esquecessem dos acontecimentos ou não quisessem falar sobre eles.


Reestabelecida a democracia, é gigantesca a falta que fazem hoje os documentos e informações que se perderam, seja pela queima de arquivo em papel ou humano, na luta pela garantia dos Direitos Humanos e por que situações como as que ocorreram durante o Regime Militar no Brasil não se repitam e perpetuem.  A perda da memória modifica a história. É por isto que hoje parentes de desaparecidos e mortos políticos têm dificuldades imensas de obter informações sobre o que sucedeu a seus familiares e de reivindicar, junto ao Estado, o reconhecimento destes fatos, exercendo em completude sua cidadania e garantindo o direito de enterrar seus entes e oficializar sua morte. É também por isso que temos grandes brechas na história do legado deixado pelo Regime e que lidamos com este período da nossa História com tanta distância e frieza, como se não nos pertencesse, como se fosse algo que dissesse respeito apenas a quem viveu a época e sofreu diretamente com os acontecimentos, nos afastando da cidadania e nos destituindo de memória.


A ANÁLISE DIPLOMÁTICA E TIPOLÓGICA DE DOCUMENTOS QUE APARECEM NO FILME


Entender o que são, o que significam e a que contexto pertencem documentos do período militar, hoje, é missão de detetive! Foi o que precisou ser dona Ivanilda quando procurava provar o desaparecimento e morte de seu marido, e os pais de Sônia Angel e Antônio Lana, como documentou o filme. 


Tentaremos aqui, por análise pautada pelos princípios da Diplomática e da Tipologia Documental, entender e contextualizar 3 dos documentos que aparecem durante o filme.


Obs. 1: os 3 documentos abaixo falam da morte de Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana


Obs. 2: não analisaremos os documentos como parte integrante do filme, mas cada um em sua natureza, tal como serviram de fonte para o que documenta o filme.
 
Recorte de jornal
DOCUMENTO 1. 

Suporte: papel jornal
Forma: original
Formato:
Gênero: textual
Espécie: recorte
Tipo: recorte de notícia veiculada em impressa escrita
Língua: portuguesa
Cor da fonte: preta
Assunto: morte de terroristas
Função: informativa
Data tópica: desconhecida (supomos, Rio de Janeiro)
Data cronológica: desconhecida (supomos, algum dia de novembro de 1973)
Autêntico, não-verídico (como se pôde comprovar por investigações e depoimentos postetiores)



DOCUMENTO 2.
Recorte de trecho audiovisual que aparece
durante o filme "Memória para uso diário"

Suporte: desconhecido (supomos, fita magnética)
Forma: original
Formato: desconhecido (supomos, VHS)
Gênero: audiovisual e textual
Espécie: filme/ documentário
Língua: portuguesa
Cor da imagem: P&B
Cor da fonte: branca
Assunto: morte de Sônia e Antônio
Função: informativa
Autêntico, verídico (como se pôde comprovar por investigações e depoimentos postetiores)



Imagem exibida em projeção durante evento
cuja filmagem aparece no filme "Memória para uso diário
DOCUMENTO 3.

Suporte: desconhecido (supomos, disco rígido)
Forma: desconhecida (supomos, original)
Formato: digital
Gênero: imagético e textual
Espécie: fotografia
Cor da imagem: colorido e P&B
Assunto: identificação das ossadas de Sônia e Antônio Carlos
Função: comprobatória
Autêntico, verídico (parte de uma investigação onde outros documentos lhe atribuem veracidade)

Os 3 documentos acima compõem uma das narrativas do filme: a saga da família de Sônia para a localização do corpo e descobrimento da causa real da morte de Sônia e Antônio. 

O documento 1 foi a primeira notícia a mãe de Antônio tive da morte do filho. Uma publicação jornalística onde seu filho, que não era terrorista, haviam sido morto em troca de tiros com a polícia, juntamente com Esmeralda. Entretanto, Esmeralda não existia. Este foi um nome fictício dado pela polícia para despistar o assassinato da jovem, o que dificultou as investigações da família da Sônia. 

O documento 2, uma declaração filmada do motorista do ônibus [e também do cobrador] onde Sônia e Antônio estavam no momento em que foram abordados pela polícia, contradiz a matéria do jornal. Os dois afirmaram que em nenhum momento o casal reagiu a abordagem e que não houve resistência ou troca de tiros.

O documento 3, fruto de uma investigação criminalística, após analisar diversas ossadas apresentadas pela polícia como sendo de Sônia e Antônio, desmentem a versão oficial e reforçam a versão do motorista e do cobrador, confirmando que o casal foi violentamente torturado e assassinado.

A documentação de fatos tais como nunca existiram e a descontextualização de documentos  que serviriam para a comprovação da fraude, modificam a função arquivística e legal dos documentos. Para a polícia, os corpos forjados e a notícia inventada serviriam de prova pra sua versão. Enquanto, reconstituídos os fatos, os documentos adiquirem novo significado.


"Memória para uso diário" e o CAArq
HONESTINO GUIMARÃES


Honestino Monteiro Guimarães era estudante do curso de Geologia, na UnB, e desapareceu outubro de 1973, no Rio de Janeiro, quando já vivia na cladestinidade. 


Lider do Movimento Estudantil desde secundarista, na UnB Honestino foi membro do Diretório Acadêmico de Geologia e presidente da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília. Em 1968 ficou preso por dois meses e foi expulso da Universidade. Foi líder na União Nacional dos Estudantes, e filiou-se à Ação Popular. Com o decreto Ato Inconstitucional 5, passou a viver na clandestinidade.


Após sua prisão e desaparecimento, enviou algumas cartas a companheiros de militância, mas seu paradeiro ficou desconhecido por muitos anos.


Seus restos mortais nunca foram encontrados, mas sua morte foi reconhecida em 12 de março de 1996.


Em homenagem e em memória à incansável militância de Honestino, o Movimento Estudantil da UnB batizou sua entidade representativa de maior relevância com seu nome: Diretório Central dos Estudantes Honestino Guimarães.
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Aos gestores e executores do Regime eram comuns as práticas de destruíção e alteração das informações registradas no exercício de suas atividades. E o que fizeram ou tentaram fazer com muitos dos opositores certamente foi o que aconteceu com Honestino. Seu paradeiro é desconhecido até hoje, e sua história não-sabida pela maioria de nossas/os estudantes é o reflexo destas práticas.


Talvez Honestino tenha sido morto como Sônia e Antônio, mas seus familiares nunca souberam, porque o nome que divulgaram era falso. Seu corpo deve ter sido enterrado como sem identificação em alguma vala clandestina e coletiva por esse Brasil. Mas não se sabe onde nem quando. Diferentemente de Sônia e Antônio, ninguém viu o Honestino ser morto. E se viu, também morreu.


História recente que não aparece nos livros escolares, mas que temos a obrigação de deixar pulsante em mentes e corações. (Luiz Cirne, NovaE)


CURIOSIDADES


De acordo com pesquisa publicada no livro "Sem vestígios - a História desenterrada", de Taís Moraes, Honestino foi preso pelo Cenimar (serviço secreto da Marinha), levado a Brasília pelo CIE (Exército) e ao Araguaia pelo Cisa (Aeronáutica). Dopado e encapuzado, Honestino Guimarães foi levado ao Araguaia em um jatinho fretado da Líder, sob escolta chefiada por um major de nome Jonas, do Cisa. Seguiram no avião até a pista de Marabá: Honestino, outro brasileiro, um francês e um argentino. 


Saiba mais sobre os documentos da Ditadura Militar no site do projeto Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional. 


P.S.: prometemos um post especial para o Memórias Reveladas!
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Fontes
Wikipédia - Regime Militar
MEPR - Sônia Maria de Moraes Angel Jones
Glossário de espécie, formatos e tipos (Sistema de Arquivo/USP)
Grupo de trabajo Archiveros Municipales de Madrid
Como fazer análise diplomática tipológica de documento de arquivo
Tipologia documental de partidos e associações políticas brasileiras
Livro desvenda morte de Honestino (vide VERSUS)
Honestino Guimarães, 33 anos da memória de um símbolo da juventude (UNE)

Um comentário:

  1. Muito boa análise e um ótimo gancho pra um pouquinho da história da UnB né?
    Esse assunto anda extremamente delicado de abordar...
    eu vi esses dois posts aqui
    http://pensamentoarquivistico.blogspot.com/2010/11/pesquisador-renuncia-por-censura-no.html

    http://pensamentoarquivistico.blogspot.com/2010/11/projeto-memorias-reveladas-maiores.html

    Complicado né?

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